quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dois tempos.



-Ah Glorinha, já foram sessenta anos e você ainda parece a mesma, a diferença é que seus dentes são moveis.
-Rodolfo, você não tem respeito mesmo, nem as crianças você anda respeitando. O nome disso é velhice, tire logo seu aparelho de surdez e o nosso silêncio volta a reinar.
-Você lembra, benzinho, como nos conhecemos? Foi aqui perto e você queria por que queria casar naquele jardim, só por que as flores cheiravam ao amor. Você lembra como as crianças surgiram do nada? Naquela época não tinha televisão. Primeiro veio Pedrinho, logo depois nossa Martinha e a Ruth veio por último adoçando nossa vida. Eram bons tempos, eu voltava do trabalho cansado, mas você sempre estava com um sorriso e uma bela torta de pêssego me esperando. As crianças sempre sujas, estavam sempre brincando nas arvores, na terra... Eu não me incomodava, adorava aquela barulheira, aquela bagunça na hora da refeição. Lembra quando o Tito morreu? Foi o chororô danado, a caçula não conseguia nem dormir sem aquele pastor alemão, ele defendeu bem nossa casa. As crianças cresceram, foram pra faculdade, casaram e agora restaram os netos. Lembra do nascimento deles? Você chorou em todos, até parecia que seus filhos nasciam de novo. Você lembra, benzinho, lembra?
-Não, quem é mesmo você?
Rodolfo perdeu Glória gradativamente para o Alzheimer, cada ano era uma lembrança que caia no ralo. No começo ele se sentia rejeitado, como se tivessem apagado a sua própria história, mas com o tempo ele se acostumou. Só o fato de ter aquele velho corpo junto ao seu era motivo suficiente para sorrir e relembrar por dois.
-Tudo bem, benzinho.Não se preocupe não que suas memorias estão guardadas no meu coração. E ele querida, só pertence a você.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Violetas na janela.



Eram as violetas que chamavam a minha atenção, presas em um vaso antiquado e frágil. Já não cabiam no recipiente, caiam aos montes tentando fugir mesmo estando mortas. As flores sem vida davam um tom funebre a paisagem, meus olhos já cegos não eram acostumados com luz e fitavam com penar o cenário que encontravam. Um quadro antigo, uma cama desarrumada, ainda com cheiro da noite passada, uma louça suja e o seu retrato.
Era melancólico pensar quanto tempo estive fora, não deixei bilhete, fotos, acessórios... Fui embora como se nunca tivesse pertencido aquele lugar, deixei apenas arranhões no espelho do quarto. Não consigo imaginar acordar todos os dias no mesmo lugar com aquelas marcas sempre refletindo um rosto desfigurado.
Agora que retorno depois de tantos anos, será que ainda é o mesmo? As violetas continuam na janela esperando que eu as reguem como fazia todas as manhãs, infelizmente não sobreviveram ao meu abandono. Será que a barba continua igual e os seus olhos, ainda são azuis? Não encontro nenhum porta-retrato recente apenas fotos velhas, sem vida.
Logo que cheguei me deparei com seu novo amor, ou amores, não entendo por que existem mais crianças aqui. Mas me pergunto, por que a fechadura não foi trocada, nem a decoração, nem a minha foto. Era a única coisa minha dentro daquela casa, uma foto. Logo hoje que fazem exatos dois anos que eu te deixei, não perguntei se faria falta, nem mencionei pra onde ia. Apenas abri a porta e fui embora. Ainda não entendo como tudo aconteceu.
Dois anos. Eu começo a caminhar pela casa e finalmente te encontro chorando, um choro de saudade, dessas que fazem doer o peito e a alma. Agarrado a foto do nosso casamento te escuto balbuciar "Até que a morte nos separe não acabou com meu amor", então entendo seu sofrimento o meu abandono foi eterno e descubro que não passei de uma alma penada descolada do meu corpo.


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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Jogo dos sete erros.


Rastejava no escuro procurando por infinitos pés. O pouco nunca lhe agradou, sempre precisou de todos. Trocava de pele mais rápido do que mastigava suas presas. Mesmo no escuro eu conseguia enxergar sua língua, sempre pra fora da boca, produzindo sons nojentos e repugnantes.
Foi criada em cativeiro, não precisou passar pelos perigos que envolvem um bicho selvagem. Conseguia ser venenosa e ingênua, principalmente na hora da janta, cada refeição uma tentativa de assassinato. Como era caseira esquecia-se que vivia em uma gaiola de vidro, sempre sendo observada pelos maiores e principalmente pelos donos de sua vida, gargalhadas eram soltas quando a pobre e fraca cobra tentava dar seu bote acreditando que ninguém ao seu redor veria, doce ilusão.
Mas o que me impressionava eram os olhos amarelos, de quem tem uma maldade escondida e um desejo guardado no fundo de um baú. Eram as duas íris finas que davam o ar de que ela tanto precisava. O olhar. Era o olhar que podia matar no escuro, era aquele olhar que podia petrificar e destruir qualquer tipo de ligação pessoal. Era aquela expressão burra e mal-criada de quem quer tudo e não tem nada.
Percebi com muita dificuldade o que se passava na escuridão da festa, a luz queimou e a serpente fora solta. Me deparei com ela enrolada no meu pé, uma tentativa mortal e débil de tentar ferir alguém. Me agacho e prendo sua cabeça em minhas mãos, veneno de cobra não tem o mesmo efeito duas vezes, não há o que temer. Entendo por completo a situação e os olhos de serpentes que eram tão amarelos na verdade, eram os olhos de uma mulher completamente sem vida.

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domingo, 25 de setembro de 2011

Alameda falante

Luana estava pronta para ir embora, tomou o último gole de uma bebida vagabunda e amarga, muito parecida com a própria rotina. Saia do bar em direção a lugar nenhum, em alguma esquina ela encontraria seu destino,era o que a ingênua menina mulher pensava.
Era tão jovem, mas sua expressão era de uma envelhecida tristeza, estava cansada de procurar amor em lugares inapropriados. Sorrisos, músculos, cabelos. Tudo isso a exasperada. De volta para casa começou a pensar no tempo perdido, nos amores que nunca aconteceram, nas paixões que nunca saíram dos olhos, dos desejos que prevaleceram na cama...
Dessa maneira desgarrada e infiel, Luana vira a esquina escura da vida, tropeçando e caindo em algumas falhas do asfalto, ao se levantar percebe um horizonte de concreto pronta para abraçar e amaldiçoar suas lágrimas secas caídas em suas roupas sujas. Toda noite obscura precisa de um sol para amanhecer, então em um raiar de luz ressecada encontra Marcus e percebe que está em uma alameda falante, gritando aos seus ouvidos os ventos do amor.

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Amnésia

Me esquece, para eu poder te esquecer
Não me enlouquece
Que sozinho é como eu vou lembrar de você.
Me esquece, ou me deixa te esquecer
Não se entristece
Que um dia essa dor há de morrer
E esquecer o que um dia foi amor...

Ai amor, eu sei que tudo não passou de um calor
E quantas vezes eu já te fiz de abrigo
Para chorar suas lágrimas no meu ombro amigo
Não me esquece, que um dia eu ainda lembro contigo
Esse destino egoísta, mesquinho
Que nós traçamos com o grafite do lápis
E como vou esquecer?
Se do nosso amor nós fizemos uma lápide
"Já se vai um amor muito tarde"

Me procure em cada par de olhos em cada madrugada
Então me veja, em cada desejo bandido, em cada coração partido
Depois me beija em outras bocas, acariciando outra línguas
Como se fosse a minha...

Mas não chore, que cada gota tua me consome
Deixa guardada, isolada toda a mágoa
Que é pra não sofrer mais
Que é para não ser maior do que já é
Vem me consome, em cada paixão, em sonho
Me devore, sendo carne crua, desnuada, só por ti...

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sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Jorge

Jorge era uma pessoa de espírito triste. Nascera triste, com um choro triste e um sopro triste. Os médicos não podiam entender como uma criança com poucos segundos de vida já possuía ares tão depressivos. Jorge cresceu, frequentou as melhores escolas e teve os melhores amigos que podia ter, recebeu todo o carinho de seus pais e bens materiais nunca lhe faltaram, mas nascera com olhos tristonhos de quem ainda vê a vida passada. Sua boca curvada para baixo e seu olhar amedrontado mostravam sua interpretação do mundo, frio e cinza. Jorge transformou-se em homem e deixou as características de menino no passado, adotou o terno e gravata, agora o escritório era quase seu segundo lar. Conheceu o amor da sua vida, casou, teve filhos lindos com bocas curvadas para cima e expressões de terna felicidade. Mesmo se considerando o homem mais feliz de todo o globo terrestre, Jorge continuava parecendo triste, suas feições abaixadas faziam do pobre homem um espelho errado do que realmente sentia. Carregava no rosto uma eterna melancolia, mas no peito levava a certeza de que a vida é bela e que aparências devem ficar mesmo é nas novelas...

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