sábado, 24 de agosto de 2013

Aline





A mão direita de Aline sempre foi estranha, as linhas do amor, saúde e da vida estavam todas embaralhadas e se sobrepunham umas as outras. Desde pequena Aline acreditava que aquilo poderia significar um marco importante, talvez um grande acidente, uma paixão louca que termina em morte, ou uma doença infectocontagiosa que mataria toda uma cidade. Aline sempre teve uma vida muito doce, sempre carregava no peito uma névoa que de forma descontrolada, dividia com os amigos, fosse nos bancos de algum jardim, em alguma casa isolada ou até mesmo nos ritmos de alguma música. Aline acreditava com todas as suas forças que era muito mais leve do que esse mundo permitia ser e que suas asas foram cortadas antes mesmo de nascer. 
" Veja só mamãe, essas marcas em minhas costas foram as asas que me cortaram! Mas eu creio que elas também podiam ter nascido no meu pé".
Aline cresceu completamente fora do tempo, na escola falava de um futuro muito distante, assustava os professores e os amigos. Sempre falavam que o mundo da Aline era provavelmente era a Lua "Mas é nosso satélite natural" contestava.  Em casa o que reinava era o passado recente, falava de guerra, de evoluções, devastações, curas e sempre era interrompida "Querida, pense na faculdade que te dará mais liberdade."
Dessa forma meio aérea e tentando descobrir os mistérios do mundo e da vida, Aline cresceu. Carregou junto a ela todas as teorias malucas e o olhar abobado que tinha pelo mundo. Continuou acreditando em alienígenas e que um dia conseguiria se tele transportar, nem que ela tenha que nascer duas vezes para isso. Agora, depois da adolescência e descobrindo a juventude, Aline mescla suas ideias com a névoa que fica ao seu redor e assim tudo ganha mais cores, mais caminhos, mais risadas e até mesmo fome ou sono.  
Aline descobriu todo o mistério que a rodeava quando sentou no banco de uma pracinha e abriu a mão direita para a cartomante. "Olha para essas linhas, elas se mesclam tanto! E se eu encostar a direita na esquerda as linhas se encontram, o que você consegue ver nessa bagunça?". A cartomante logo viu que a menina era meio lunática e sabia que embora muitos a achem maluca, era o tipo de raridade que não se jogava fora. "Ta vendo essa linha aqui? Essa é a linha da vida e aquela outra lá do amor e mais essa aqui é a sua saúde. Ta vendo como sua linha da saúde é longa? Já a sua linha da vida é ao contrário, você sabe o que isso significa?"
Com toda a paciência do mundo Aline levanta e como se fosse o seu ultimo segundo de folego afirma "Eu sempre soube que eu estava morta" e mais uma vez deixa outra pessoa sem saber se ela era um personagem ou uma alucinação.

Muitas pessoas procuram por Aline e quando encontram é sempre uma metamorfose, alguns mudam o estilo de vida, outros fazem músicas que são cantadas por gerações e gerações e sempre tem os que a perguntam o sentido da vida. Aline sempre reúne os amigos e o ambiente sempre fica mais suave com ela perto, os maiores batuques foram feitos com sua presença, até os trabalhos escolares ficavam mais amplos e completos. Aline é amiga de todas as pessoas, professores, policiais, bombeiros, pai, mãe, estudante. Aline é uma grande risada e uma fome terrível. Acreditem, a maioria das pessoas já encontrou ou vive com Aline.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Não fica.


Não fica, não embola sua roupa no chão para demorar mais tempo, não me olha daquele jeito suplicante e caloroso que não é isso que eu quero. Não fica, por que eu detesto ter que pensar em alguém durante o dia e só piora se for involuntário. Não fica, eu não nasci de uma música ou filme e detesto esse romance barato que as vezes me pego criando, não fica por que o meu apego é desapegado e o meu ciúme beira a indiferença quando você tá olhando.  Vai embora, eu tenho péssimas manias que eu adoro e eu sei que pessoa consciente no mundo iria conviver, vai embora que tempo é dinheiro e eu pouco me importo quanto eu to ganhando. Vai embora que eu não quero ter lembrança nenhuma daquela viagem inesquecível que a gente fez e que você não gostou, por que só eu tava lá.
Não fica, por que eu não vou aturar suas mudanças de humor, nem tenho paciência para a saudade que você vai causar, não fica por que a geladeira tá a zero e eu detesto cozinhar. Não fica não, não quero me apegar a sua conchinha, nem ver a marca do teu corpo na minha cama, não quero ligar a TV e saber que você ia odiar aquele programa que eu adoro e pedir pra mudar de canal. Não fica por que não quero fazer outros planos, não quero ter visão nenhuma das próximas horas da sua presença. Vai embora se quiser ir e senão quiser, vai também. Não quero achar no meu armário aquela sua blusa velha que eu adoro dormir, vai embora que já deu sua hora, eu sei como o trânsito fica na volta pra casa. Isso, vai para sua casa, onde tudo é seu e me deixa no meu canto aonde tudo que eu olho e toco é meu.
Na verdade, fica. Fica mais um pouco só para eu saber que eu só me pertenço, que teus braços são aconchegantes, mas quentes demais pro calor que fica nessa cidade. Fica um pouquinho só para eu saber que teu corpo não faz par com o meu e que eu detesto ter que ceder uma gaveta do meu criado-mudo para alguém. Fica só mais um minuto, não, fica apenas mais um segundo para eu te ver e saber que apenas nos meu olhos o futuro vai nascer.

sábado, 13 de abril de 2013

Os últimos cinco minutos

Fica mais, não vai embora tão depressa, deixa tua camisa amarrotada no pé da cama e deita mais um pouco comigo. Até faço o café que você tanto gosta, espera só mais cinco minutos. Vem conversar comigo na janela, com sua xícara quente na mão e outra envolvendo minha cintura, me diz que o dia nasceu bonito e o sol nunca esteve tão forte. Espera a chuva passar, ela ainda nem começou.
Deixa eu sentar no teu colo mais uma vez e te entregar as meias para você ir embora, teu sapato ficou perdido em algum canto do meu quarto, procura por ele mais cinco minutos só para eu te admirar mais um pouco. Pega o celular e finge que me manda uma mensagem, fica só mais cinco minutos pensando em mim e ponderando se vale a pena tantos minutos assim.
Vai embora se quiser ir, a porta nem sempre estará aberta e o relógio tampouco vai parar também. Coleta todos os últimos cinco minutos e guarda no bolso da calça e quando você menos esperar vai lembrar do que se passou.
Os últimos cinco minutos não me serviram de muita coisa, não deu tempo de dizer que por você eu teria toda a paciência do mundo e que ficaria irritada se você esquecesse de mim, que por mais desorientada que eu seja eu sempre focava nos seus olhos que gritam o seu devaneio. Vai-te embora agora por que embora a saudade exista, eu sei que tempos melhores virão. E sempre, eu disse sempre existe tempo para quem quer ficar.

terça-feira, 5 de março de 2013

Lembrar ainda é não esquecer.

Essa minha vontade de nada
Apenas deitar e ver seus olhos rolando
Passando pela embriaguez e sobriedade
De um amor que a sua dureza não me deixa contemplar

Eu cruzo as pernas mais uma vez e abro meus braços para você
Eu lembrei dessa vontade insana de te ter aqui, pertinho de mim
E percebi que lembrar mesmo que por pouco
Ainda é não esquecer
Acabo te mantendo guardado neste meu coração louco

Eu fujo, fujo rápido das palavras cortantes e da sua língua navalhada
Fujo pois teu coração ainda que maior, é mais duro e opaco que o meu
Fujo para lembrar como eram os dias antes de você
E percebo que lembrar mesmo que por uma vez
Ainda é não esquecer.

A porta agora se encontra fechada, presenteada pelo seu cadeado
Do lado de fora ainda resta você, com a mesma cara de tédio enjoado.
Todas essas imagens, figuras e personagens me fazem perceber
Que lembrar, mesmo que seja quase nada ainda é não esquecer.

As voltas que teu coração dá, sempre entre o sim e o não
Me fazem bater a cabeça e me nocauteiam no chão
Lembrar do que poderia ter sido e não foi, não é esquecer
É magoa contida, aflição mal-vinda de quem vem sem querer me ter.



terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Entre pontes e tijolos.



Hoje de manhã passei em frente a uma construção, estavam acabando uma casa pequena e simples dessas que uma família inteira mora e ainda agradece pelo teto em suas cabeças. Tinham tijolos espalhados pelo chão, no meio deles vi uma esperança que ninguém mais viu, vi uma promessa de vida melhor, de novos sonhos e rotinas... Atravessei a minha ponte.
No meu percurso, eu podia ver muitas coisas através do vidro: Pessoas indo trabalhar, poças d’agua sendo secas pelo sol que já nascia, um novo dia, um novo olhar, novas pessoas dentro de velhas roupas, meu próprio reflexo. Quando  eu cheguei no meio do percurso vi uma outra casa sendo demolida, metade dela já estava no asfalto já não existiam tijolos, apenas entulho, quantas pessoas moraram ali? Quantas lembranças um simples tijolo com cimento pode proporcionar? Pensei o dia todo nisso, o futuro e o passado se mesclam de uma maneira que o presente deixa de existir e eu agradeci em voz baixa por poder ter todos que amo a minha volta.
Eu já tive minha casa demolida, explodida com uma bomba, vi seus pedaços indo pro ar e depois baqueando no chão, vi as janelas indo embora com a porta trancada, o tapete de boas vindas já não existia mais, minha casa se foi, mas minhas lembranças continuam vivas e coloridas. Eu perdi alguns quadros antigos que eu amava com todas as minhas forças e foram embora sem eu poder contempla-los por uma última vez, o telhado que nos protegia foi arrancado com o vento e talvez proteja outra casa agora, preserve o assoalho de uma família que precise mais que a minha.  Os muros foram os últimos a caírem, mas esses eu mesma fiz questão de tirar, tijolo por tijolo, briga por briga, lembrança por lembrança. Recolhi seus pedaços do chão e prometi a mim mesma que este muro que eu desfiz não ira para minha nova casa, não irá tampar minha visão, nem mesmo impedir alguém de entrar. Pois agora, eu não tenho uma nova casa.  Eu tenho um novo caminho, uma nova ponte que eu fiz com os tijolos que me privavam do mundo, eu tirei os olhos chorosos e recoloquei o sorriso, colhi os últimos frutos da minha jabuticabeira velha e doce, ignorei os problemas do passado, selei as brigas antigas, amadureci meu futuro.
Não importa se é uma casa, uma ponte ou um avião que você deseja, o novo sempre vai existir. Portas podem estar trancadas ou abertas, assim como o seu coração. Limpa a poeira do móvel antigo, acrescente mais uma foto na sua parede, coloca mais água no feijão que sozinho ninguém vive, sorrisos não foram feitos para serem amarelos e nem os olhos escondidos em óculos de sol. Entre pontes e tijolos eu fui ao chão e também ao céu, eu tive ombros e mãos para me ajudar, assim como pés para me pisar, de nada adianta o futuro se com tantos tijolos é o muro que você prefere. Diga sim e sinta pela primeira e ultima vez sinto o vento do verão lhe alegrar o rosto.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A margem de si mesma.



Guilhermina tinha medo, sempre tinha muito medo de se tornar a pessoa que a segurava na foto de quando era bebe. Guilhermina sempre cresceu á margem de si, vendo no espelho os mesmo traços de seus pais e escutando dos irmãos menores como ela era a mais parecida com eles.  Até mesmo a ponta desgrenhada de seu cabelo era uma acusação do gene de sua mãe, tudo ao seu redor mostrava que ela era apenas uma cópia 20 anos mais nova de seus pais.
-Você é a sua mãe inteira.
-Mas a loucura, a loucura certamente é herança do pai!
-Veja até o modo de andar é igual!
Guilhermina já não sabia se a força da convivência a tornava igual a seus parentes ou se tinha alguma parte do seu DNA que a mandava ser igual aos seus progenitores.  Tinha medo, tinha muito medo de ficar presa a todos esses espelhos que refletiam como ela iria ficar, sempre teve muito medo da língua afiada dos outros parentes conjurando que toda a história ia se repetir.  Nadou contra a corrente, resolveu ser de espirito livre, esquecer quem a rodeava e se fechou para o mundo, seu eterno medo de se tornar como seus pais estava  concretizando-se. Guilhermina viveu com os índios, teve amantes de todas as cores e sabores, se apaixonou e quebrou alguns corações. Guilhermina viveu muitas décadas em apenas duas e agora entendia quando falavam de sua loucura, entendia quando seu pai ria de seus sonhos impossíveis, quando sua mãe desdenhava da sua capacidade de se virar sozinha.... Começou a entender tudo e a solidão que tanto aplacava aquela família passou a ser amiga de seu peito.
Guilhermina era uma cópia exata de seus pais e por isso todos esperavam as mesmas falhas,  as mesmas fraquejadas e ao mesmo tempo despejavam em suas costas a visão de uma realidade melhor. Como era difícil interpretar o papel de uma contradição: Ora xerox, Ora rascunho. Guilhermina não queria nada disso! Desejava do fundo das suas entranhas ser ela mesma, um desenho mal feito e rabiscado de uma pessoa única, diferente de tudo que ela já viu e não cópias exatas que passam de geração em geração... A loucura, a gana, a inteligência, a arrogância, quantas coisas não circulavam em seu sangue e chegavam na íris do seu olho, que por algum acaso era igual a de seu pai.
Há certas coisas na vida que nunca podemos compreender, nem se fossemos imortais poderíamos desvendar certos mistérios. O egocentrismo humano sempre foi e sempre será um dos maiores egoísmo de família; Seja maduro, você me lembra tanto quando eu era jovem; o seu pai também dizia isso; a beleza de sua avó. O egocentrismo humano  sempre foi e sempre será  um dos maiores erros naturais que cometemos.
 Há certas coisas na vida que nem mesmo oito décadas trarão o conhecimento ou a sabedoria, precisamos da dúvida dando facada nos nossos pulmões, necessitamos descontroladamente, desesperadamente, exasperadamente achar a cura para todos os males. Nós nunca acharemos.
Guilhermina percebeu, com muita dor no coração, que não adiantava mudar o sorriso, os planos futuros, ou o olhar: Sempre estaria à margem de si mesma.  Podia pintar os cabelos de amarelo, verde ou roxo, ser uma rebelde, queimar dinheiro em praça pública ou sair pela rua que ainda iriam dizer “tinha que ser filha de quem é”. Guilhermina compreendeu com um certo penar que ela era a expectativa da vida fracassada de seus pais, que o futuro dela na verdade pertenceria a eles e que sua vida nunca fora sua verdadeiramente. Resolveu por um único minuto ser ela mesma, escreveu uma bela carta pedindo desculpas por não ser um futuro brilhante, por lembrar uma juventude imatura, por nunca ter sido ela mesma. Implorou aos pais para não depositarem tanta emoção nos irmãos, deixarem os menores serem como quiserem. Por fim, superou seu último medo: O de altura. Arremessou-se do vigésimo quinto andar, sentiu pela última vez o frio na barriga, sentiu o medo e o desejo de continuar caindo para sempre, sentiu pela última vez a sensação de ser feliz. Guilhermina preferiu morrer a encarnar um papel que não lhe cabia, Guilhermina decidiu ceifar a própria vida a viver a margem de si mesma. Guilhermina agora vive nos olhos lamacentos de seus pais e suas cinzas voam o mundo todo. Teve em sua morte tudo que quis ter em vida e teve em sua vida sua toda e completa morte.