domingo, 29 de janeiro de 2012

Estação.

Era uma tarde como outra qualquer dessas em que as pessoas se cumprimentam, se esbarram e assistem filme, que eu mergulhei de volta em meu ser. Embora a chuva caísse lá fora aqui dentro apenas mar e é com uma água salgada e limpa que me recordo do outono. O frio do ambiente não impediu que calor dos corpos transparecessem e dessa forma o gelo que pairava em minha cabeça foi derretendo, meus dedos faziam uma viagem em teu corpo, contornando teus ombros, teus braços, teu peito, enquanto que minha boca solitária e áspera implorava por tua saliva e teus dedos enrolando meus cabelos me faziam parar de pensar e respirar.
Em uma cena bronze onde as horas passavam mais rápido do que deviam, eu fechava meus olhos e escutava o silêncio, momento em que apenas nossos corpos desnudos falavam e se ouviam, como se o suor fosse nossa nota musical e o doce aroma nosso maestro. Eu via o roteiro sendo escrito com as linhas tortas e mudas que um dia eu escondi de mim mesma. O vento, o calor, sua perna contra a minha, minha mão contra o colchão, eram os elementos que eu precisava para voltar a pensar. A vida passava lá fora e dentro do quarto apenas um momento que eu vivi como único, como se fosse a última cena de um curta, o último ato de uma peça de teatro.
Acordei no dia seguinte com o barulho da chuva, uma forte cortina do liquido incolor caia no chão e eu apenas conseguia escutar suas gotas batendo na janela. Esfreguei meus olhos e contemplei por um breve momento aquela paisagem, tanta água me fez lembrar do último outono e então eu volto a dormir pensando se o que aconteceu foi real ou apenas um sonho.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O rato roeu.

O rato roeu os corações ainda vivos e com o sangue de inocentes em seus dentes prosseguiu seu caminho. O rato roeu nosso resto de comida e misturou em sua saliva o lixo e a paixão dos inocentes, fazendo em sua boca um caldeirão de bem e mal. O rato procriou e surgiram inúmeros outros ratos que roeram nossas roupas, nosso salario, nossa felicidade e nosso amor. Com sua urina de cheiro forte nos marcou para que sempre lembremos do que nos foi tirado: O poder de pensar.
E o rei dos ratos impera em um mundo sujo e cinza, com sua prole fiscalizando, demarcando e comendo tudo o que vê pela frente, o mundo é dos ratos. Farejando nosso medo e subindo em nossas barrigas, alcançam nossos corações e cérebros.... Nós definhamos pelo fato de não podermos mais agir, mais falar, mais consumir. O rato roeu meu dedo, meu indicador preciso e mortal, roeu minha língua afiada e venenosa, roeu meus olhos cobertos por cortinas de dióxido de carbono.
O rato comeu e virou sua própria comida, sendo deposito de luxuria, poder e ganancia, abençoando seus filhos e condenando seus desconhecidos. O rato com sua barriga estufada e suas patas para cima descansa para próxima refeição, podem ser crianças, pobres, doentes, miseráveis... O rato apenas come. O rato de tanto roer, cresceu, criou polegares e aprendeu a falar e desde então o mundo é dominado por ratos de duas pernas, coluna ereta e julgamento de aço.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

7 cartas.

Em um labirinto de becos e pernas me perdi
Rodopiando e me enrolando em nós mal atados
Sujando lençóis de amores escondidos
Perdendo apostas de dados nunca lançados

Se caio no chão e desfaleço
É por que a cortina de fumaça me cega
E eu sei que tudo na vida tem um preço
Preço que a solidão me nega.

Sei que possuo sorrisos, olhares virais
Que contagiam espelhos, corações mortais
Vejo em seus olhos um brilho delirante
Tão parecido com meu peito errante.

Não me jure amor se me quer por perto
Sou do mar, do vento, de qualquer hemisfério
Pois sou língua quente em coração aberto
Paixão mascarada em jogo de mistério.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Baila Comigo.

Dorinha estava sentada no banco de sua varanda, relembrando, rindo sozinha e comemorando mais um ano de casamento. Geraldo faleceu em fevereiro, sendo degenerado lentamente pelo câncer, sua família o viu definhar em uma cama de hospital, ficando cada vez mais pálido, magro, cada vez mais morto. Dorinha e Geraldo se casaram no final de setembro, por que segundo a moça as flores nascem e o amor ganha vida. Estavam fazendo sessenta anos de casados, mesmo com o seu marido ausente e enterrado, Dorinha fazia questão de comemorar a união deles. Tirou o telefone do gancho, falou para os filhos e netos não baterem em sua casa, hoje era um dia especial. Arrastou com um pouco de dor nas costas os dois sofás, retirou o tapete e deixou a mostra o chão de madeira, do jeito que os dois faziam todas as noites antes de se separarem fisicamente.
Dorinha colocou seu vestido rodado, os sapatos com salto pequeno e abraçou o terno de seu finado. O conduziu a sala com todo o cuidado do mundo, era a primeira vez que voltava ao ritual sem seu amado. Ligou a vitrola e um belo bolero começou a tocar, segurou as lágrimas e abriu um sorriso "Hoje sou só eu e você, como há vinte anos atrás", fechou os olhos e voltou para o salão aonde se conheceram...
Geraldo galanteador e o melhor dançarino do salão, era conhecido pelo bigode impecável e os sapatos brilhosos. Todos os dias depois do trabalho, ele subia a ladeira e virava a direita para Rua 56 aonde encontrava os amigos, puxava uma saia e rodopiava com as músicas. Foi assim que Geraldo e Dorinha se conheceram.
Dorinha adorava boleros e era, disparada, o melhor par de pernas da cidade. Não digo isso apenas pela beleza natural daquela jovem, mas pela graça de seus movimentos tão encantadores. A fita rosa no cabelo, os lábios vermelhos, o vestido verde escuro rodado, todo figuro combinando com a época e a ocasião.
"Baila comigo", foi o que Geraldo falou para o seu amor, sem nem um olá ou um cortejo, apenas "Baila comigo", estendendo a mão direita e curvando os lábios para esquerda, o rapaz tirou um belo suspiro da moça. Foram girando, rodopiando e sacudindo o salão até o amanhecer. Descobriram nos passos dançados um amor maior que eles. Daí em diante todos nós sabemos o que aconteceu, os dois se apaixonaram, casaram, tiveram uma linda família e uma casa quitada, até a morte os separar.
Dorinha abre os olhos, percebe que o terno de seu moço está completamente molhado por suas lágrimas, sentia tanta a sua falta que já não comia, ou dormia direito. Abria todos os dias o guarda-roupa, pegava uma camisa e ficava horas cheirando e lembrando do perfume, lembrava dos passeios no parque, dos sorrisos inesperados, do primeiro filho.
Dorinha desligou a vitrola, guardou o terno e se aprontou para dormir. Antes de se deitar olhou para o porta-retrato em sua cabeceira, os três filhos e cinco netos, ela e seu eterno Geraldo. Fechou os olhos pela última vez e caiu no sono eterno, avistando Geraldo apenas disse "Baila comigo, baila comigo..."