segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Paredes de um quarto.

Numa confusa troca de olhares, beijos e bofetadas, os dois estranhos conhecidos se reconhecem. Aquela relação de desejo e paixão estava chegando ao seu fim, as duas linhas em horizontal marcavam o desencaminhar de um conjunto. Aquelas duas almas, tanto se queriam tanto se separavam, eram extremos em um constante vai e vem de violência e caricias. Dois pares de olhos, vendados pela falta de visão, dois belos rostos cobertos por seus véus e tristezas.
Todas as paredes, tábuas de chão que testemunharam o amor e ódio dos sonhadores, o espelho que não calava o prazer e refletia os olhos de angustia. Quantas estórias um espelho conta. Aquela casa era testemunha, cúmplice do amor vingativo deles. Quantas tardes, noites e manhãs insanas eles passaram se odiando em cima da cama, como se fossem duas crianças mal-criadas lutando contra o destino. Eram viciados um no outro, em lágrimas, em rompores de raiva e solidão. E agora a cama que antes era tão gozada, se encontra coberta de sangue, sangue quente, sofrido de quem amou muito, viveu muito e esqueceu de si.
A briga, a última, a pior de todas, a declaração de amor antes da facada, a admiração frente ao espelho, os olhos limpos pela água, o rosto desnudo, o corpo quente.
- Cala boca, você acha que é assim? Que você vai embora sem nem dizer adeus? Vai bater a porta e passar o trinco?! Vai dizer que fui teu jogo, teu brinquedinho.- Mel estava descontrolada, vermelha, possuída pela raiva que a consumia, estava vendo partir pela última vez o homem que a pertencia.
- Eu nunca te fiz promoter o teu amor a mim, muito menos eu a você. É uma ingrata, quantas noites passou ao meu lado agoniando de prazer e agora, quer um final dramático com beijos apaixonados e bofetadas? Cresça minha menina, que eu não sou teu. - Roberto estava calmo, carregava a mala em uma mão e o terno em outra. Estava decidido a largar tudo, voltar para a mulher e os filhos. Não existia futuro com ela, o próprio presente era turvo.
-Se for para você me bater, me surre agora. Olha pra mim, meu amor, fala no meu ouvido que eu fui sua cobaia, sua experiência extra-conjugal. Eu quero ouvir, fala que eu fui teu melhor jogo, fui sua mais longa insônia. Olha suas olheiras fui eu quem causou, que dedicação passar noites em claro só para pensar em mim. Meu anjo, você deve estar tão cansado, estar com a sua mulher e pensar em mim, desejar meu corpo, minha risada, até acorda assustado que eu sei, achando que eu fui embora. Fala, que eu fui só mais um troféu na sua estante, que você não sente nada.- Mel com suas mil e uma faces manipula mais uma vez Roberto, como se ele fosse uma marionete, ela era a senhora da situação, dona do próprio destino e dos outros também.
-Mel, doce tão amargada, leve tão pesada. Tem esses dentes de navalha essas pernas que me travam. Você é carne, carne crua coberta por desejos e pecados, coberta por delírios e birras de uma garota mimada. Escutou, você é carne crua!
-Cínico, miserável, é o que você é. Esse jogo de usar e abusar ainda acaba contigo. Você me consome, me provoca e me perturbando assim eu te devoro, eu só quero te devorar. Eu sou carne crua no teu peito, que arde, tortura, te fura. Sou carne crua e você me machuca, me queima, com a ponta dura da tua língua e mesmo assim eu sigo te adorando, te amando, só para poder te devorar.
Mel e Roberto envoltos pela atmosfera de fúria e tesão se entregam como nunca antes aos lençóis daquela cama, dois loucos apaixonados, ardendo pela cólera da perda, pelo último adeus, pela última foda. Acabada a caricia perturbada dos dois jovens estranhos, o silêncio incomodava no ar, as pernas bambas de Mel se levantavam, tão firmes, tão moles. A comoda escondia um segredo, era a chave para a eternidade, como se fosse a própria casa da morte.
-Mas já que você não pode ser meu, não será dela também, nem de ninguém.- Mel puxa o gatilho e mata o amante adormecido, dormia como um anjo, tão leve, tão perturbado. Perdera as asas quando a conhecera. Dirigindo-se ao espelho, Mel implora e revela.
- Crie boca, aprenda uma língua e conte a estória de amor e ódio que as paredes e tábuas testemunharam, você viu tudo, sabe o que aconteceu. Agora sim eu vou viver.
Mel estava tão bela quando acertou a bala em seu coração, morrera como uma qualquer, nunca fora citada nem no rodapé do jornal local. Mas ninguém nunca esqueceu os olhos de mistério que aquela pequena mulher revelava.

Um comentário:

  1. Eu comentei contigo ontem sobre o texto mas venho aqui hoje para reafirmar o quão bom ele está. Menina, eu leria um livro teu, sabia ? hahahaha Eu facilmente imerjo num estado de sonho, fico imaginando as situações, os personagens, expressões e atitudes... Enfim, apesar de grande eu li continuamente desde a primeira linha à última.
    Magnífico!
    Beijos,

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