quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Baila Comigo.

Dorinha estava sentada no banco de sua varanda, relembrando, rindo sozinha e comemorando mais um ano de casamento. Geraldo faleceu em fevereiro, sendo degenerado lentamente pelo câncer, sua família o viu definhar em uma cama de hospital, ficando cada vez mais pálido, magro, cada vez mais morto. Dorinha e Geraldo se casaram no final de setembro, por que segundo a moça as flores nascem e o amor ganha vida. Estavam fazendo sessenta anos de casados, mesmo com o seu marido ausente e enterrado, Dorinha fazia questão de comemorar a união deles. Tirou o telefone do gancho, falou para os filhos e netos não baterem em sua casa, hoje era um dia especial. Arrastou com um pouco de dor nas costas os dois sofás, retirou o tapete e deixou a mostra o chão de madeira, do jeito que os dois faziam todas as noites antes de se separarem fisicamente.
Dorinha colocou seu vestido rodado, os sapatos com salto pequeno e abraçou o terno de seu finado. O conduziu a sala com todo o cuidado do mundo, era a primeira vez que voltava ao ritual sem seu amado. Ligou a vitrola e um belo bolero começou a tocar, segurou as lágrimas e abriu um sorriso "Hoje sou só eu e você, como há vinte anos atrás", fechou os olhos e voltou para o salão aonde se conheceram...
Geraldo galanteador e o melhor dançarino do salão, era conhecido pelo bigode impecável e os sapatos brilhosos. Todos os dias depois do trabalho, ele subia a ladeira e virava a direita para Rua 56 aonde encontrava os amigos, puxava uma saia e rodopiava com as músicas. Foi assim que Geraldo e Dorinha se conheceram.
Dorinha adorava boleros e era, disparada, o melhor par de pernas da cidade. Não digo isso apenas pela beleza natural daquela jovem, mas pela graça de seus movimentos tão encantadores. A fita rosa no cabelo, os lábios vermelhos, o vestido verde escuro rodado, todo figuro combinando com a época e a ocasião.
"Baila comigo", foi o que Geraldo falou para o seu amor, sem nem um olá ou um cortejo, apenas "Baila comigo", estendendo a mão direita e curvando os lábios para esquerda, o rapaz tirou um belo suspiro da moça. Foram girando, rodopiando e sacudindo o salão até o amanhecer. Descobriram nos passos dançados um amor maior que eles. Daí em diante todos nós sabemos o que aconteceu, os dois se apaixonaram, casaram, tiveram uma linda família e uma casa quitada, até a morte os separar.
Dorinha abre os olhos, percebe que o terno de seu moço está completamente molhado por suas lágrimas, sentia tanta a sua falta que já não comia, ou dormia direito. Abria todos os dias o guarda-roupa, pegava uma camisa e ficava horas cheirando e lembrando do perfume, lembrava dos passeios no parque, dos sorrisos inesperados, do primeiro filho.
Dorinha desligou a vitrola, guardou o terno e se aprontou para dormir. Antes de se deitar olhou para o porta-retrato em sua cabeceira, os três filhos e cinco netos, ela e seu eterno Geraldo. Fechou os olhos pela última vez e caiu no sono eterno, avistando Geraldo apenas disse "Baila comigo, baila comigo..."

Nenhum comentário:

Postar um comentário